Permita-me que eu fale, não as minhas cicatrizes
Tainá Valente Amaro – Psicóloga – Mestre em Psicologia Social. Professora substituta de Psicologia da FURG.
No mês de Novembro, somos atingidos por notícias sobre o tema Consciência Negra. Porém, pouco se ouve para além dos sofrimentos vivenciados pela população negra. Por isso, escolho como título para esse texto parte da música Amarelo, do cantor Emicida.
Sabemos que o racismo atravessa e produz adoecimento psicossocial e do quanto ele dita como a população negra sente, enxerga e vive. Mas, para além disso, é preciso pensar nas estratégias de (re)existência criadas por pessoas pretas, pois é através delas que comunicamos as nossas potencialidades, sonhos, desejos e necessidades.
Nos últimos anos a saúde mental tem ganhado uma maior visibilidade, principalmente após a pandemia. E sempre que eu falo sobre a saúde da população negra, reforço o quanto precisamos pensar o bem estar, o bem-viver, os voos possíveis e nossas projeções para o futuro. Entender que somos mais do que esse passado marcado pela escravização e colonização, é nos humanizar. O passado nunca deve ser esquecido, mas a nossa capacidade de construção para além dele é o que nos movimenta de forma saudável. Mas como é possível seguir essa busca quando constantemente nos deparamos com situações que acionam o sentimento de não pertencimento?
De acordo com uma pesquisa recente, realizada pela Globo e intitulada “O que falta para reinar? As Dimensões do Consumo Afro-Brasileiro”, mais da metade da população negra sente algum tipo de discriminação ao entrar em estabelecimentos comerciais. Os resultados foram divulgados durante o Festival Negritudes Globo e apontam que 79% dos consumidores negros acreditam que a discriminação racial vivida durante as compras afeta diretamente sua saúde mental e autoestima.
De acordo com Grada Kilomba, escritora e artista multidisciplinar, o racismo está presente em nossas memórias e afetos, o que torna necessária a construção de caminhos e espaços de cura para esses traumas. Portanto, os dados confirmam o fato de que situações como essas acionam lembranças que estão em nossos corpos, mesmo que a gente não saiba muitas vezes identificá-las.
Este ano, tivemos o lançamento da Frente Nacional de Negras e Negros da Saúde Mental (FENNASM), uma articulação de pessoas pretas trabalhadoras, estudantes, militantes, usuárias e pesquisadoras da saúde mental. E podemos, sim, considerar esse movimento como um grande avanço, pois é fundamental pensarmos os atravessamentos raciais na saúde mental para que seja possível repensar a construção das instituições e serviços de saúde. Afinal de contas, o acesso a esses ambientes é um direito de todos.
Quanto pessoas pretas, precisamos identificar em nós a capacidade de produzir, a partir de nossos próprios termos, a nossa história. E esse movimento perpassa pelo reconhecimento de criação, protagonismo e do resgate de nossa humanidade, que os traumas raciais roubam.
Retomando aos os versos de Amarelo, quando Emicida fala que “se isso é sobrevivência, nos resumir a sobrevivência é roubar as coisas boas que vivemos”, ele nos dá pistas para que não deixemos que as experiências de falta ditem nossas ações e nossas vivências.
Conseguir enxergar nossa família, coletivos e os diversos espaços educativos que criamos e protagonizamos como pilares para que possamos construir boas experiências é o que irá nos fortalecer para seguir em frente.